[junho de 2025]
para mayara blasi
quarta-feira, à noite, enquanto cozinhava a minha tradicional sopinha de legumes, que aqui em casa, comemos com muita mostarda e pedacinhos de queijo canastra, troquei ÁUDIOS com uma amiga sobre o que significa escrever. Assim como eu, essa amiga conduz grupos de escrita, ou seja, acompanha o processo de escrita de outras pessoas. Minha amiga (M) começou a ler meu livro novo e disse que ficou claro pra ela o tempo de dedicação presente no livro, o investimento que existiu pro livro acontecer. Vou reproduzir o que M falou porque achei muito bonito, fiquei emocionada, senti que M recolheu, no meio de tantas outras vozes, a minha voz e acho que isso é sempre uma DÁDIVA que as pessoas que escrevem recebem.
Ela disse: "você elege a avó e fica com a avó, não necessariamente você está esperando o que vai acontecer ou...além de ter o fato de escrever pra descobrir o que vai escrever, tem esta investida, que não é de uma sentada, que é de um tempo muito, muito grande, que você volta na avó, volta na avó por aqui, essa investida num tema de obsessão que me é muito caro, pelo simples fato de existir investida: eu vou de novo, o meu tempo de novo é aqui. Isso, pra mim tem uma magnitude de amor mesmo, sabe? E que tem a ver com nossas relações, né? E eu não sei se isso parece muito besta, o que eu estou falando, mas tem a ver com...a gente tá sendo tão sugado por essa nossa atenção fragmentada que eu acho louvável, sabe, ter um projeto literário e, inclusive, decidir dar fim para o projeto...essa investida é de um amor profundo, não necessariamente com a avó, mas...é...que me aproxima muito de uma verdade, não sei explicar, acho que você já me entendeu, tô falando desse puro desejo mesmo..."
SIM,SIM, SIM. MUITO OBRIGADA POR RECONHECER ISSO. MEU PURO DESEJO. E mais uma vez me sinto um pouco como aquela garota de nove anos que desejava ardentemente receber medalhas de honra ao mérito por todas as tarefas que realizava, pelo seu extremo esforço. Mas que fique claro que hoje vejo e penso de outra forma. Penso que não deveríamos levar esta energia e essa subjetividade (pré e pós capitalista e apocalíptica) do esforço pra todos os campos da nossa vida. Pode nos adoecer, geralmente, adoece. Sempre me lembro daquele filme lindo do estúdio Ghibli: O serviço de entregas da Kiki, mas não vou fazer este deviso agora.
O que quero dizer é que acho que pra um ou outro LUGAR podemos SIM levar nosso esforço. Eu levo pra escrita. Vivo a escrita como uma atividade, ao mesmo, tempo cansativa, difícil, exaustiva, rarefeita, mas, também, EXTREMAMENTE prazerosa.
M disse que ficou emocionada com isso, em ver isso, esse investimento no meu livro. Eu também me emociono quando alguém pega essa batata quente que é o desejo de escrever e o sustenta, nas mãos, apesar de tudo. A imagem da batata quente é da Tamara Kamenszain. Durante anos, Tamara conduziu processos de acompanhamento de escrita que ela chamava de clínicas de escritura e sabia como pode ser difícil sustentar esta papa caliente. Mas não é impossível, ou melhor, é muito possível.
Escrever é um dos processos mais lentos e contraprodutivos do mundo. Eu, por exemplo, posso ficar dois dias num parágrafo de 12 linhas. Depois, fico mais dois dias relendo este mesmo parágrafo. Nem todo mundo é assim. Tenho um pouco de inveja de quem escreve rapido. Comigo, é tão desesperador que eu só suporto esta tortura mental porque uma hora o BARATO da escrita vai chegar - quando a gente tá contente, tanto faz o quente, tanto faz o frio, tanto faz. Barato TOTAL mesmo. Aquela mesma reação que você tem quando fuma um ou ___ (inclua mentalmente o que te dá barato) ou quando, depois de subir uma montanha durante horas, chegar lá em cima e encontrar uma cachoeira MARAVILHOSA, você entra com o corpo quente na água gelada e sua cabeça produz uma espécie de onda - um arrepio curto, seguido de uma breve descarga de eletricidade e, depois, um relaxamento intenso: a onda, as sinapses relaxadas e atentas fazendo tum zum ziu phahhh, a pura BUBUIA.
Nem sei muito bem nomear isso que toma conta do meu corpo. Isso que, provisoriamente, COLA todos aqueles meus pedacinhos que flutuam dispersos, quase sempre numa outra vibração: mais distráida e preocupada.
Escrever provoca isso em mim: sinto prazer, muito prazer! Não sei explicar de outra forma. Também sinto angústia, dúvida, MEDO (escrever sobre a própria família não é bolinho) insegurança…mas o prazer neutraliza todo o resto. Já percebi que quando travo ou paro ou desisto e abandono um texto é porque não consegui chegar neste platô onde o prazer é mais intenso que as dificuldades. Nenhum problema. É mais da ordem da exceção do que da regra sustentar a batata quente. Mas é neste ponto tenso que sua paciência e seu desejo são, diariamente, testados. É preciso persistir, suportar a angústia, suportar aquelas manhãs em que você corre como um cão atrás do próprio rabo, arrancando os fios do cabelo como a personagem da novela Os Patos: uma mulher que vai e que volta, que anda em círculos e que nunca sai do lugar. É esta neurose que paralisa a escrita e frente a ela - sorrateira, murmurante, sombra inquieta - temos que acionar outra energia. Não tenho dúvidas, assim como M, que essa energia é a da OBSESSÃO. No meu caso, também a energia do prazer. Amar a escrita, amar os probelmas da escrita e do texto, suas encruzilhadas, seus enigmas, seus pontos cegos. Amar, também, aquele momento em que o nó se desata. Amar o texto como se ama alguém de carne e osso, com muita força e coragem.
Quando estou totalmente metida num texto nada mais desvia meu olhar, minha atenção e meu DESEJO. A escrita é meu hiper foco. Os problemas do texto ocupam todos os espaços da minha cabeça. Até me esqueço de pensar nos problemas reais da vida que se emplilham como as roupas lavadas na lavanderia, esperando que os moradores da casa decidam guardá-las.
Quando publiquei meu primeiro livro de literatura, Os Patos, pela editora Impressões de Minas, um livro escrito entre 2010 e 2011, mas publicado apenas em 2018, eu queria falar justamente desse problema, que durante alguns anos, vivi: querer escrever e não conseguir. Eu me fazia esta pergunta neurótica: como faço para estar no mesmo lugar que a minha cabeça? Como faço para não andar em círculos? Naquela época, eu e minha cabeça vivíamos em litígio: uma pra cá, outra pra lá.
Esse tempo, como tantas outras coisas, ficou para trás. Tenho muitos (e novos) problemas, mas ESSE não mais.
Lá-lá-lá-lá-lá-lá-lá-lá…
PS:
O motivo das PALAVRAS em caixa alta é porque ando lendo muito Diário de um banana, com meu filho de 10 anos.
Desde o ano passado eu queria escrever este texto, ou melhor, conseguir falar sobre o prazer da escrita, acho que hoje consegui, obrigada Mayara, um dia ainda faço um documentário sonoro com todos os seus áudios.
Total, amada!
E no entanto no entanto, a gente escreve!
Como é bom ter ler com a sua voz e se sentir compreendida em lugares que nem sabia nomear...